Voltar

Inácio Supervisor de adega

Ser adegueiro: as entrelinhas e o braço direito de tudo o que acontece


Inácio Capucho – Supervisor de adega

Há um Alentejo interior em que Espanha é mais vizinha do que o Atlântico, onde as planícies revelam tonalidades de verde entrelaçadas com o amarelo seco, quente, terroso. Nesse Alentejo onde o Alqueva acalma os mais de 40º que o verão traz, encontra-se Reguengos de Monsaraz. Dividido em quatro freguesias – Reguengos de Monsaraz, Corval, Monsaraz, Campo e Campinho – é como um ‘tesouro’ revelado. É um lugar que preserva um trato, não só a quem o visita, mas em tudo o que faz. E quem tem essa sorte, sabe que o modo de viver se alapa em nós.

Inácio Capucho, supervisor de adega da Herdade do Esporão, é originário de Campinho, uma das aldeias ribeirinhas do Alqueva. Aqui as casas baixas e caiadas, cujas barras em rodapé de cor não as deixam ser totalmente brancas, viram nascer muitas das pessoas que ajudaram e ajudam a fazer vinho no Esporão. Mas sobre isso falaremos mais à frente. Há também uma igreja do século XX que toca sinos feitos na década de 50 do século passado. As ruas são estreitas e têm a vida ativa que a boa vizinhança proporciona. Em 1987 o cuidado de um desses vizinhos foi o catalisador para 36 anos de vindimas. Tudo começou com o serviço militar obrigatório que terminara, mas moldara o corpo e resiliência de Inácio no seu regresso a casa. “Vê lá se queres vir trabalhar, que estás sem trabalho”, disse-lhe o vizinho e Inácio pediu para que tratasse disso. No dia seguinte, a 10 de outubro de 1987, começou o seu primeiro dia no Esporão – “Lembro-me bem do primeiro dia. Surgiu quando acabei o serviço militar obrigatório. Vinha da tropa, cheio de ‘cabedal’ e disseram-me logo “este é para despejar caixas de uvas”, e pronto, eu aceitei, entusiasmado. Na altura, as condições do meu vizinho não eram as mesmas que as minhas, fisicamente falando, mas ajudávamo-nos um ao outro. Foi assim que vim aqui parar”, recorda.

Começou por despejar caixas de vindima. Passados três meses foi convidado para trabalhar com as prensas, depois começou a geri-las e em menos de um ano era responsável de adega, que na altura incluía a linha de enchimento. “Tentei perceber, desde o primeiro dia, como tudo funcionava, porque é que eu tinha de despejar as caixas de determinada forma e, já nessa altura, quando tinha intervalos, eu vinha cá para baixo (adega) ver como se prensava, como se bombeavam as massas”, conta Inácio, entre risos. Durante o processo de aprendizagem “também fiz algumas asneiras, mas fui sempre evoluindo, respeitando os desafios que a enologia ia lançando”. Foi essa curiosidade e empenho que, anos mais tarde, o trariam até aos dias de hoje.

No início, a herdade estava longe de ser o que é atualmente. “As caixas vinham cheias de lama”, eram precisos muitos homens, “muita força de braços”. Pelas suas contas, “na vinha, o reboque carregava sensivelmente 7 paletes, cada uma com 12 caixas, o que significava que havia duas pessoas a despejar em simultâneo, era um desafio acompanhar a velocidade”, que era motivo de disputa saudável entre as equipas que se formavam. Já na adega, Inácio recorre a memórias de 1989, quando fazia maceração carbónica. “As uvas entravam, tínhamos tapetes enormes espalhados pela adega, na receção, e as caixas eram transportadas até essa cuba onde tudo era despejado, o cacho inteiro. Imaginem ter 25 toneladas… era uma manhã para uma cuba, e depois o problema era desencubar, porque era tudo com ancinhos, força de braços.” Foi acompanhando a evolução da maquinaria e da construção das novas adegas – Adega Monte Velho e Adega de Brancos – que, segundo Inácio, “foi um enorme desafio”.

Afinal, o que faz um adegueiro?

Segundo o dicionário, um adegueiro é “a pessoa que trata da adega”, mas sabemos que um adegueiro é mais do que isso. É um cuidador. Inácio é-o há mais de 30 anos. Indagado sobre o que faz exatamente na sua profissão, a resposta é extensa porque faz, realmente, muita coisa de forma minuciosa – “Um adegueiro tem de estar atento a todas as operações, acompanhar e estar em contacto com os enólogos. No fundo, estes passam-me as operações que pretendem fazer e eu tenho de as garantir. Tenho de estar atento ao desenvolvimento dos equipamentos e ver se o vinho está bem-acondicionado. Estou atento às cubas, aos lotes, vejo filtrações, acompanho com muita atenção a primeira trasfega que é muito importante e por isso tem de ser bem feita. Muita coisa”.

Existe uma responsabilidade que Inácio sublinha ao longo da explicação, a de “trabalhar em conjunto com a equipa, tentar percebê-la, acompanhá-la e ensinar tudo o que for necessário para que o trabalho flua”. Na sua ótica, o adegueiro é o braço direito do enólogo e tudo começa na confiança e boa comunicação que estabelece para que estejam todos dentro dos mesmos assuntos. Não fosse esta a “3ª ou 4ª geração de enólogos com quem trabalha”, frisa.

A meio da conversa ouvem-se as uvas a chegar à Adega Monte Velho. Inácio ri-se. É o barulho a que está acostumado e que nos ajuda a lembrar que estamos em plena época de vindima. O barulho da azáfama, da transformação. Durante o período de vindima, como todos, tem trabalho acrescido, por isso há duas coisas que definem esta altura: “entusiasmo e dor de cabeça”. Nas suas palavras, “quando acaba uma vindima, prepara-se a próxima”. Durante a vindima já está a anotar tudo o que correu menos bem, o que ficou danificado, o que é preciso para o próximo ano, para que estejam preparados. “No final passo essas notas ao enólogo e depois a decisão é deles, mas estou o ano inteiro a pensar na próxima vindima. Uma vindima é sempre um desafio, nenhuma é igual à outra. Depende do produto, das condições e também dos pormenores que a enologia quer aplicar. Todos os anos é um desafio diferente, todos os anos acontecem coisas novas, temos de gerir muitos aspetos, mas é sempre desafiante.”

O crescer de um vinho, como o crescer de um filho

“Em 1988, um senhor australiano deu-me um livro que fala sobre uma família. Começa a contar a história de um filho, e do que é vê-lo crescer. Só no final do livro é que percebemos que durante toda a história o autor se refere, afinal, ao vinho.” Inácio começa por narrar, desta forma, a sua história com Monte Velho. Entrou no Esporão na altura em que a Adega dos Tintos – atual Adega Monte Velho – foi construída. Esteve na construção da Adega de Brancos, em 2002, e na Adega dos Lagares em 2015. Em 2018, a Adega dos Tintos foi renovada e modernizada de forma a aumentar a capacidade de produção e a qualidade de vinhos como Monte Velho. Apontando com os braços para o local onde estamos – a Adega Monte Velho – explica que ali mesmo, naquele local, começaram com uma quantidade muito reduzida de uvas. Depois foram crescendo em quantidade, “melhorando aspetos”, o vinho chegou mesmo a estar em barricas, “para dar o toque de madeira”. No fundo, acompanhou todos os processos, mas sempre com o perfil de Monte Velho salvaguardado.

Para si, “Monte Velho é mesmo um filho”, viu-o nascer e crescer. “O que fazemos com o nosso filho é garantir que vai por um bom caminho e que melhore ao longo da vida. Monte Velho é igual. Todos os anos o desafio é renovado e podemos sempre melhorar. E eu ajudo nisso”. O orgulho é dito pela sua boca. “São 37 vindimas, se não gostasse não estaria aqui”. Estou sempre a dizer “não se preocupem, se houver um problema, estou aqui”. Tenho orgulho no meu trabalho, muito orgulho, porque me dediquei a ele todos estes anos, a tempo inteiro”. Diz não existirem segredos na sua profissão. Apenas se dedica ao que faz, “sempre com gosto” e “nunca deixa nada para trás”. Quando as coisas fogem ao delineado, gere as expectativas, vê alternativas, dá hipóteses, está atento ao que a enologia pretende assinando com a responsabilidade a que habituou todos os que têm trabalhado consigo.

Segundo Inácio, quando entrou no Esporão, 90% da equipa era do Campinho, terra que o viu nascer e abalar para a tropa. Durante muito tempo, ficou ele o responsável por formar uma equipa, feita maioritariamente com gente do Campinho. No vai e vem da vida, alguns foram embora, mas há pessoas que ainda trabalham consigo, “ainda fazem parte da família da altura”. Não é por isso segredo que Monte Velho tem, não só as suas mãos, tem também a sua camaradagem.

Conheças as históriasde todos os protagonistas